Revista Brasileira de Avaliação
https://rbaval.org.br/article/doi/10.4322/rbaval202412028
Revista Brasileira de Avaliação
Editorial

Mudanças climáticas e sobrevivência humana: O conhecimento como esforço para adiar o fim do mundo

Max Felipe Vianna Gasparini, Martina Rillo Otero

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No momento em que escrevemos este editorial, olhamos da janela o horizonte da maior cidade do Brasil e da América do Sul: São Paulo, com seus quase 12 milhões de habitantes estimados em 2024. O céu acinzentado pela mistura de poluição, fumaça oriunda de queimadas em todo o país e baixa umidade do ar em contexto de ondas de calor extremo, como nunca registrada na história, traz ao nosso campo de visão uma paisagem urbana quase distópica, digna de filmes como Mad Max. O alcance limitado e não generalizável de nossa visão do horizonte do alto dos arranha-céus traz uma perspectiva empírica cujas evidências científicas têm demonstrado com método e rigor: a megalópole brasileira tem registrado poluição acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde há 22 anos, conforme análise de dados da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB) realizada pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) (Energia e Ambiente, 2022). Da mesma forma, a cidade vem batendo recordes de temperatura e aumento na frequência das chamadas ondas de calor, ultrapassando médias de 35º, pelo menos desde 2010. É o que apontam relatórios da estação Meteorológica da Universidade de São Paulo (USP) coordenado pelo Instituto Astronômico e Geofísico (IAG) (Jornal da USP, 2024). As mudanças observadas nos ciclos e volume das chuvas dão conta de um aumento de 500 milímetros na última década no município paulista, bem como sua duração média. A mudança nos ciclos e volume das chuvas pode ser extrapolada da capital paulista para uma escala nacional, e seus efeitos podem ser associados ao aumento das enchentes, como as observadas no estado do Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024. No resto do país, observamos a intensificação de outros eventos extremos, como as estiagens, e as queimadas, relacionadas às primeiras, mas decorrentes também da ação humana. Poderíamos afirmar que, em termos de mudanças climáticas e seus impactos nas paisagens, o que os olhos veem, a ciência respalda.

Se os efeitos das mudanças climáticas que observamos e sentimos nas cidades têm produzido situações de calamidades e emergências, no campo a situação não é menos grave. As mudanças climáticas têm provocado transformações profundas nas zonas rurais e florestais brasileiras, exacerbando vulnerabilidades já existentes. Estudos indicam que o aumento das temperaturas e a alteração dos regimes de chuvas afetam diretamente a agricultura familiar, principal fonte de produção de alimentos do país. Fatores como a irregularidade das chuvas têm levado à perda de safras e à diminuição da produtividade, colocando em risco a segurança alimentar (Santos, 2024). Além disso, o fenômeno da desertificação tem avançado, em especial na região do semiárido nordestino, reduzindo a capacidade de uso do solo para a agricultura (Perez-Marin et al., 2012).

No que se refere às áreas florestais brasileiras, especialmente na Amazônia, os efeitos têm sido cada vez mais graves. A interação entre o desmatamento e as mudanças climáticas gera um ciclo vicioso que pode levar à savanização da floresta, conforme previsto por alguns cenários de aquecimento global (Nobre et al., 2016). A perda de cobertura florestal também reduz a capacidade de captura de carbono, exacerbando o efeito estufa e, consequentemente, aumenta a frequência de eventos climáticos extremos, como secas prolongadas e incêndios florestais, que têm se tornado mais comuns nos últimos anos (Brando et al., 2020). Esses eventos não apenas ameaçam a biodiversidade, mas também a sobrevivência das comunidades tradicionais que mantêm com seus territórios vínculo vital e ancestral para produção de seu sustento, cultura, tradições e modos de viver. Nem as causas ou as consequências das mudanças climáticas se distribuem de maneira equânime na história e na sociedade. Países desenvolvidos, historicamente têm sido os principais emissores de gases de efeito estufa (GEE), enquanto que países em desenvolvimento sofrem em especial as consequências das mudanças climáticas, assim como grupos marginalizados, incluindo populações de baixa renda, minorias étnicas e mulheres.

Essa relação entre as mudanças climáticas e seus impactos nos modos de vida tem sido cada vez mais compreendida como indissociável da condição humana e suas possibilidades de sobrevivência no planeta. Antes tratada como variável externa aos projetos de desenvolvimento – ou desenvolvimentismo, como foram conceitualizadas as experiências de acelerado crescimento econômico na América Latina no século XX, as mudanças climáticas passam a ser também compreendidas a partir dos efeitos que produzem na saúde das populações. Tal compreensão nos alerta que não será possível formular projetos de desenvolvimento apartados das questões socioambientais que garantam as condições necessárias para a vida.

É o que nos informa, por exemplo, o relatório do Lancet Countdown sobre saúde e mudanças climáticas, publicado em 2023, onde um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras exploram a relação entre os efeitos das mudanças climáticas e a saúde das populações por todo o planeta. O referido relatório traz dados alarmantes, como o fato de que adultos acima dos 65 anos e bebês com idade inferior a 1 ano, grupos para os quais o calor extremo pode ser fatal, “estão agora expostos a duas vezes mais dias de ondas de calor do que teriam vivenciado em 1986-2005” (Romanello et al., 2023). Além disso, as mortes de pessoas acima dos 65 anos em decorrência das altas temperaturas tiveram crescimento de 85% quando comparado com o período entre 1990 e 2000 (Romanello et al., 2023). Ainda, conforme dados contidos no relatório, as mudanças climáticas também têm colocado um contingente cada vez maior de populações em risco de doenças infecciosas potencialmente fatais, como a dengue, a malária, a vibriose e o vírus do Nilo Ocidental.

É possível afirmar, portanto, que as mudanças climáticas têm transformado profunda e rapidamente o cenário de diversos biomas e regiões urbanas e rurais no Brasil e no mundo, com impactos nos diversos modos de vida e na saúde das populações. Tal cenário exige ações urgentes para mitigar tais impactos, proteger os ecossistemas que afetam diretamente a vida das pessoas e promover medidas de adaptação às mudanças climáticas, que já são uma realidade.

É neste contexto que lançamos este número especial, fruto da parceria entre o Instituto Clima e Sociedade (iCS) e a Revista Brasileira de Avaliação (RBA) em torno da divulgação de iniciativas que possam gerar conhecimento para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas. Associar os temas caros à RBA, como monitoramento, avaliação e planejamento com os diversos tópicos envolvidos com a temática das mudanças climáticas e efeitos nas culturas humanas se mostrou um projeto particularmente desafiador, em vários sentidos. A despeito das inúmeras iniciativas de geração de conhecimento, mobilização e ações de diversos atores e organizações envolvidas com esta agenda, nas esferas públicas e privadas, pudemos vivenciar o desafio de sistematização de tal conhecimento e experiências na forma de manuscritos, como artigos, ensaios e relatos de experiência. Foram inúmeras chamadas e prorrogações de prazos, convites e mesmo campanhas para reunir um conjunto de textos para a produção desta edição especial.

Nesta edição, reunimos um conjunto de textos que testemunham a diversidade de organizações e grupos implicados com a agenda das mudanças climáticas em suas diferentes frentes de atuação. Grupos de pesquisa de universidades brasileiras e de outros países latino-americanos, dos Estados Unidos e Europa; lideranças de povos indígenas; organizações públicas e privadas e pesquisadores e pesquisadoras com diferentes formações e vínculos institucionais nos brindaram com seus textos, compondo uma edição marcada pela pluralidade de temas, proposições e caminhos a serem seguidos.

No último Seminário da Rede Brasileira de Avaliação, em Junho de 2024, em Belém - local não escolhido aleatoriamente, mas justamente por ali ser a sede da próxima COP - Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), pela primeira vez foi lançada uma trilha específica de mesas e debates sobre avaliação, clima e meio ambiente. Vemos surgir um saber e questões específicas relacionados a esse encontro de áreas: a urgência de avançarmos em nossa capacidade de lidarmos com complexidade e a insuficiência da linearidade para pensar o social e sua interação com o ambiente. Além disso, desenvolvemos um olhar sistêmico e multidisciplinar. Finalmente, há uma urgência de integração de diferentes formas de saber, para além do científico-ocidental, e incluir falas e valores de povos, comunidades e culturas que são parte da solução para a questão das mudanças climáticas. Essas são todas questões intensamente vividas em processos de avaliação como um todo, mas a emergência climática e a produção de conhecimento em torno da nossa compreensão e necessidade de lidar com ela, demandam uma mudança de paradigma. Esses são temas também trabalhados em diversos artigos desta edição.

Esperamos que esta edição especial, dentro de seus limites, possa se somar a diferentes iniciativas em torno da geração de conhecimento capaz de catalisar os esforços desta profusão de agentes sociais envolvidos com o enfrentamento das mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Nos parece imperativo constituir espaços para a circulação de experiências capazes de frear, mitigar e promover ações de adaptação às mudanças climáticas para os ecossistemas naturais e humanos, e a esta missão convidamos demais iniciativas que atuam no campo do desenvolvimento organizacional, – onde os temas de planejamento, avaliação, monitoramento e gestão são centrais – para compor uma frente ampla de geração e disseminação de conhecimento.

Se as mudanças climáticas impactam em todas as esferas humanas e ecossistemas naturais, independentemente de fronteiras, acreditamos que com esta edição especial estamos contribuindo para a superação das diferenças disciplinares e institucionais nas quais os agentes autores dos textos se filiam. Cremos, com isso, que colaboramos para a criação de uma coalizão ampla e diversificada, capaz de enfrentar a questão das mudanças climáticas enquanto for possível enfrentá-las.

As mudanças climáticas já podem ser vistas, sentidas e sistematizadas pela ciência, e a esta altura não é mais possível “dourarmos a pílula”: um futuro em que possamos evitar o avanço deste cenário distópico, cada vez mais frequente, e o qual testemunhamos por nossas janelas, irá exigir mais do que temos feito até aqui. A possibilidade de um futuro para a humanidade, portanto, passa por uma tomada de posição radical no presente.

Referências

Brando, P. M., Soares-Filho, B., Rodrigues, L., Assunção, A., Morton, D., Tuchschneider, D., Fernandes, E.C.M., Macedo, M. N., Oliveira, U., Coe, M. T. (2020). The gathering firestorm in southern Amazonia. Science Advances, 6(1), 1832. http://doi.org/10.1126/sciadv.aay1632

Energia e Ambiente. (2022, maio 26). Cidade de São Paulo tem poluição do ar acima do recomendado pela OMS nos últimos 22 anos. Recuperado em 3 de dezembro de 2024, de https://energiaeambiente.org.br/cidadede-sao-paulo-tem-poluicao-do-ar-acima-do-recomendado-pela-oms-nos-ultimos-22-anos-20220526

Jornal da USP. (2024, junho 10). São Paulo vem registrando recordes de temperatura desde 2010. Recuperado em 3 de dezembro de 2024, de https://jornal.usp.br/radio-usp/estacao-meteorologica-da-usp-vemregistrando-recordes-de-temperatura/

Nobre, C. A., Sampaio, G., & Borma, L. S. (2016). Savannization of the Amazon forest: Implications for climate, biodiversity, and the local population. Global Environmental Change, 26(1), 34-45. http://doi. org/10.1016/j.gloenvcha.2014.12.002

Perez-Marin, A. M., Oliveira, A. L., & Silva, P. M. (2012). Núcleos de desertificação no semiárido brasileiro: Ocorrência natural ou antrópica? Parcerias Estratégicas, 17(34), 87-106.

Romanello. M., Napoli, C., Green, C., Kennard, H., Lampard, P., Scamman, D., Walawender, M., Ali, Z., Ameli, N., Ayeb-Karlsson, S., Beggs, P.J., Belesova, K., Ford, L.B., Bowen, K., Cai, W., Callaghan, M., Campbell-Lendrum, D., Chambers, J., Cross,T.K., Van Daalen, K.R., Dalin, C., Dasandi, N., Dasgupta, S., Davies, M., Dominguez-Salas, P., Dubrow, R., Ebi, K.L., Eckelman, M., Ekins, P., Freyberg, C., Gasparyan, O., Gordon-Strachan, G., Graham, H., Gunther, S.H., Hamilton, I., Hang, Y., Hänninen, R., Hartinger, S., He, K., Heidecke, J., Hess, J.J., Hsu, S.C., Jamart, L., Jankin, S., Jay, O., Kelman, I., Kiesewetter, G., Kinney, P., Kniveton, D., Kouznetsov, R., Larosa, F., Lee, J.K.W., Lemke, B., Liu, Y., Liu, Z., Lott, M., Batista, M.L., Lowe, R., Sewe, M.O., Martinez-Urtaza, J., Maslin, M., McAllister, L., McMichael, C., Mi, Z., Milner, J., Minor, K., Minx, J.C., Mohajeri, N., Momen, N.C., Moradi-Lakeh, M., Morrissey, K., Munzert, S., Murray, K.A., Neville, T., Nilsson, M., Obradovich, N., O’Hare, B.M., Oliveira, C., Oreszczyn, T., Otto, M., Owfi, F., Pearman, O., Pega, F., Pershing, A., Rabbaniha, M., Rickman, J., Robinson, E.J.Z., Rocklöv, J., Salas, R.N., Semenza, J.C., Sherman, J.D., Shumake-Guillemot J., Silbert, G., Sofiev, M., Springmann, M., Stowell, J.D., Tabatabaei, M., Taylor, J., Thompson, R., Tonne, C., Treskova, M., Trinanes, J.A., Wagner, F., Warnecke, L., Whitcombe, H., Winning, M., Wyns, A., Yglesias-González, M., Zhang, S., Zhang, Y., Zhu, Q., Gong, P., Montgomery, H., Costello, A. (2023). Relatório 2023 do Lancet Countdown sobre saúde e mudanças climáticas: O imperativo de uma resposta focada na saúde em um mundo que enfrenta danos irreversíveis. Recuperado em 3 de dezembro de 2024, de https://www.thelancet.com/pb-assets/Lancet/Hubs/countdown/translations/ PortuguesBR_Lancet_Countdown_2023_Executive_Summary-1700054103900.pdf

Santos, A. (2024, março 5). Mudanças climáticas afetam a agricultura e prejudicam a produção de alimentos. Recuperado em 3 de dezembro de 2024, de https://jornal.usp.br/campus-ribeirao-preto/mudancasclimaticas-afetam-a-agricultura-e-prejudicam-a-producao-de-alimentos/


Submetido em:
03/12/2024

Aceito em:
03/12/2024

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